domingo, 1 de novembro de 2009

Sugar Blues

“Com açúcar, com afeto,
Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa, qual o quê!”


Sentei na cama meio atordoada. Na noite anterior, tinha desfeito meus sonhos, como quem desfaz as malas após longa viagem. Parece que algumas peças nunca reencontram seu lugar. Tentei guardar todos os sonhos que ainda me faziam sorrir. Por fim, larguei uns jogados na cama. Esses ainda me serviriam?
O café quente me pareceu mais amargo. “Sempre sem açúcar, hoje sem afeto”, pensei. Não sei se naquele momento alguém me ouviu, mas um barulho engraçado me levou à cozinha. Sorri com a ironia: Québec, a gata, havia derrubado o açucareiro – o que me trouxe certo desgosto, já que o meu não-consumo de sacarose elevou o pote a uma altura desconfortável, até para um gato.
Enquanto limpava a pequena bagunça, recolhi o açúcar num montinho branco e analisei a cena. Lembrei da primeira vez em que vi neve. Foi um misto de euforia e frustração pueril; não me pareceu nada mágico como os filmes mostravam. Da mesma forme me senti com o açúcar aglomerado pelas minhas mãos, talvez com menos euforia dessa vez, mas ainda muito infantil.
Se os animais sabem interpretar o humor de seus donos, Québec provavelmente estava me provocando ou exigindo reação da minha realidade inerte, não só por derrubar aquela doçura alva, mas também por lamber meus dedos e desfilar com elegância felina na neve que eu acabara de reinventar. Ao passo que ameacei – falsamente – “Te mato, criatura!”, a gata emitiu um miado que me pareceu um riso de deboche e correu.
Depois de toda limpeza e esquema de organização para que nenhuma outra surpresa me assombrasse, voltei pensativa para meu quarto bagunçado de sonhos. Me dei conta de que eles continuavam ali, jogados em cantos que eu desejei nunca mais encostar. Mas me ocorreu também que talvez eu tivesse desencantado deles por falta de doçura – o que é muito estranho, já que sempre me acusaram de ter uma personalidade deveras “melosa”. O fato é que minha gata percebeu sinais que eu ignorei. Me questionei, displicente: “Será que...?” mas não completei os pensamentos.
Acho engraçado quando o medo invade minha vida. Sempre fui muito temerosa, mesmo com coisas pequenas. O que me assombrava agora era medo irracional de me perder junto daqueles sonhos que preferi apagar. Não sei se é a melhor saída para me ver livre de alguns problemas, mas quando sua cabeça é bombardeada dia e noite com informações que, mesmo não querendo, você precisa assimilar, fica difícil compactar lembranças, selecionar acontecimentos bons e realizar todos seus sonhos.
Volto então a dizer como animais sabem usar o sexto sentido: eu já me encontrava deitada na cama, enrolada nos sonhos mais próximos, quase me afundando neles, olhos fechados, punhos em riste, boca semi-aberta (sinal de que o corpo já sentia minha oralidade ameaçada – é por isso que não termino de verbalizar aquilo que penso?)... Talvez se eu me olhasse “de fora”, pensasse estar morta, tamanha a estranheza da cena. Eis que Québec pula certeira em meu estômago – uff! – e me traz à vida como quem é salvo por um desfibrilador e se encolhe assustado.
Pensei novamente no açúcar derrubado... Ajeitando o cabelo, espanei sonhos que se grudavam em meus braços. Com uma caixa de presente meio envelhecida, recolhi todos aqueles que encontrei caídos ao me redor, arrumei-os conforme a data e intensidade. Meus dedos tremeram tentando salvar um ou outro, mas consegui me controlar. Lacrei a caixa.
-Québec, amanhã iremos aos Correios!


NDS